terça-feira, 19 de janeiro de 2010
Valter Pomar contesta entrevista de Rudá Ricci
Puplicado:
02:12
Por:
Rodinei Costa
Em 29 de outubro de 2009, pubiquei aqui no Blog uma entrevista do sociólogo Rudá Ricci. Hoje publico um texto de Valter Pomar, historiador e Secretário de Política Internacional do PT, contestando e polemizando as teses defendidas por Rudá Ricci em entrevista concedida ao IHU On-Line no dia 30/11/2009. Segue na íntegra o seu texto:
Preocupa-me o conjunto da análise da entrevista de Rudá Ricci e o pessimismo tipo "beco sem saída". Não concordo com a análise, porque:
a) ele parte do contraste entre os movimentos sociais hoje e nos anos 80 (um ponto de partida em si complicado);
b) exagerando algumas características dos movimentos sociais dos anos 80 (o que serve para reforçar o contraste);
c) atribuindo a esta categoria ("movimentos sociais") um papel (o de partido no sentido histórico) que tais movimentos nunca tiveram e acredito que nunca terão.
Quando digo que o ponto de partida é complicado, refiro-me, por exemplo, ao seguinte: quando o IHUOn-Line pergunta ao Rudá como ele define a situação dos movimentos sociais hoje, a resposta é que os movimentos hoje "quase não são como os movimentos que ocorreram nos anos 80".
Convenhamos, trata-se de uma resposta de viés acaciano (as coisas em 2009 são diferentes das coisas em 1980), que só teria relevância se o "normal" fosse que tais coisas devessem ser iguais ou muito semelhantes. Dizer que as coisas são diferentes não avança um único passo em relação ao óbvio; mas nos enfia numa armadilha: meio sem perceber, iniciamos o debate tendo como paradigma um passado mítico (onde as coisas eram mais felizes).
Exemplo deste "passado mítico" é a seguinte frase de Rudá: "a quase totalidade deles [movimentos] é, hoje, organização". Curioso: todos nós aprendemos que é preciso lutar e organizar. Mas eis que, nesta resposta, "organização" é apresentada como equivalente a "burocratização".
Hoje temos "organização" (algo apresentado como ruim), antes não: segundo Rudá, "movimento social não possui hierarquia, se caracteriza por mecanismos de democracia direta para tomada de decisões e luta por direitos, utilizando o conflito aberto como prática política".
Sinceramente, eu tenho dificuldade de enquadrar os movimentos sociais dos anos 80 nesta definição. Seria mais produtivo trabalhar com a idéia de que há uma dialética entre luta social e organização social; os dois elementos estão presentes; nos momentos em que a participação se torna mais massiva, a relação entre a organização e a luta se altera em favor da democracia direta e do conflito aberto. Mas os dois elementos (organização e luta; ou organização e espontaneidade) estão sempre presentes.
Contrapor os dois não ajuda a entender o sindicalismo do ABC no final dos 70, início dos 80, por exemplo. Ademais, neste tipo de definição do Rudá, se introduz uma afinidade que me parece totalmente forçada. Segundo ela, os movimentos sociais dos anos 80 seriam anti-institucionali zantes e adeptos do ideário comunitarista- cristão. Gozado: não existe hierarquia mais exitosa do que a da Igreja católica. É exitosa entre outros motivos porque tem um centro forte, sem prejuízo da capilaridade, inclusive através de seus "giros" e de suas "franjas" radicais.
Neste sentido, é um erro falar da lógica "anti-institucionali zante" dos movimentos sociais dos anos 80, movimentos fortemente influenciados pela dinâmica da Teologia da Libertação, sem perceber o papel jogado pela presença extremamente institucionalizada da Igreja Católica naquele exato momento. Aliás, parte do que ocorrerá com os movimentos sociais e com a esquerda brasileira nos anos 90 e hoje, está relacionado exatamente à dinâmica da esquerda católica e da Igreja católica em geral.
Voltando ao que dizia antes: o raciocínio de Rudá Ricci contrapõe um passado mítico a um presente terrível. O presente pode ser terrível, mas ele deve ser compreendido e criticado sem que para isso precisemos exagerar sobre as supostas qualidades do passado.
Por exemplo: Rudá reclama, ao responder a segunda questão do IHU On-line (sobre os empecilhos e os desafios) da "deficiência de formulação", que "transforma os movimentos sociais e organizações populares do Brasil em reféns do Estado". Trata-se de um raciocínio típico de certa intelectualidade, que chega perto de atribuir os problemas da prática às carências da teoria, como se uma formulação "adequada" tivesse poderes mágicos, como se o "verbo" fosse capaz por si só de gerar luz...
O peso do Estado na sociedade brasileira não é um fato novo, as relações entre as classes trabalhadoras e o Estado não são fato novo, as carências teóricas da esquerda não são fato novo. Assim, o que mudou mesmo dos anos 80 até hoje?
Minha opinião sobre isto é a seguinte: a luta por políticas públicas, a luta por direitos sociais, a luta por democracia nos marcos do capitalismo, implica em maior presença do Estado. O fato de estarmos conseguindo isto, num ambiente ainda hegemonizado pelo neoliberalismo e através de nossa presença em parte de um Estado não apenas burguês, mas "reformado" pelo neoliberalismo, cria distorções imensas.
O nosso problema é duplo: precisamos de mais Estado e precisamos de um Estado de novo tipo. Mas em nenhum caso precisamos de menos Estado. Assim, o problema não pode ser a "estatalização", mas sim quanto e qual "estatalização".
Neste sentido, é um desserviço que Rudá nos diga que o "neoliberalismo não é mais hegemônico" no Brasil. Se o traço fundamental do neoliberalismo é a hegemonia do setor financeiro, esta hegemonia segue "comandando" nosso país. Ocorre que Rudá parece focar no governo, não no Estado e nas relações fundamentais de classe. Seu raciocínio é: lulismo = social-liberalismo; lulismo = hegemônico no governo; logo, neoliberalismo não comanda mais. Este raciocínio está errado, é um deserviço para a esquerda, pois ajuda os neoliberais a manter sua hegemonia.
Dizer que a direita brasileira está "domesticada", por exemplo, é não apenas errado, mas perigoso.
A parte que achei mais interessante da entrevista de Rudá é sua especulação acerca das relações entre o governo Lula e o que ele chama de "classe média emergente".
Meu reparo a esta especulação é o seguinte: não se trata de uma "classe média emergente", mas sim de uma fração da classe trabalhadora. O que me faz lembrar algumas besteiras que o Leôncio Martins Rodrigues dizia a respeito dos metalúrgicos do ABC (o equivalente "anos 70", em termos de ascensão social e capacidade de consumo): se não estou lembrando mal, para Leôncio as condições diferenciadas de vida neutralizariam a capacidade de luta dos metalúrgicos do setor moderno da indústria brasileira. Como se sabe, não foi isso que passou e arrisco dizer que algo semelhante pode se passar (ainda bem) na nossa época.
Acho que o termo "classe média emergente" é uma categoria tipicamente "de classe média", uma visão teórica que tem dificuldade de entender a composição real das classes trabalhadoras brasileiras. Aliás, nesta linha de "pensar como classe média", me chama a atenção que Rudá tenha simpatia pelo termo estatalização e que fale de mensalão, ao mesmo tempo que critica os outros (a dita "classe média emergente") como "desconfiada, ressentida, que desconfia da política"... Mas estou de acordo com ele que precisamos debater como "lidar" com este novo setor social.
Outro aspecto interessante na entrevista de Rudá é sua afirmação segundo a qual estaria em curso a criação de um "pacto fordista tupiniquim, que gera inclusão no mercado de consumo, mas não inclusão no processo decisório da política pública brasileira".
A rigor, o projeto que anima o setor majoritário do PT é a retomada do desenvolvimento econômico, com ampliação do bem-estar e da democracia. Isto certamente não é socialismo; e merece ser criticado e superado, pois o máximo a que podemos chegar através deste projeto é mais ou menos onde estávamos nos anos 1980.
O problema é que algumas críticas a este projeto são de direita e falsificam a realidade. Por exemplo: Rudá reclama do "fortalecimento do Estado como demiurgo do desenvolvimento do país". Esta é, (sem tirar nem por), a crítica que a direita faz: acusa o governo Lula de estatista.
(Aliás, a crítica que Rudá faz contra Chavez e contra Raul Castro segue a mesma linha: o problema parece ser o Estado em si, não percebendo as contradições existentes na sociedade, as classes fundamentais, as relações internacionais, o modus operandi da direita etc.)
Rudá contrapõe o "Estado demiurgo" versus a (suposta) "era dos movimentos sociais". Mas esta contraposição não faz sentido algum, porque a pauta dos movimentos sociais só adquire materialidade se vira política de Estado. Assim, a questão é qual Estado e para quem.
Um dos problemas do governo Lula, ao contrário do que diz Rudá, é a seguida influência de neoliberais e setores privatistas, que desconfiam ou recusam papel central ao Estado. O modo "americanizado" de fazer política decorre exatamente disto: da privatização da política.
Curiosamente, Rudá se anima todo quando fala do modus operandi do Greenpeace ( "rede, ousadia, discurso mediático, agressividade e elaboração técnica"), assim como demonstra enorme simpatia pela atuação de organizações de direitos civis nos EUA, na campanha de Obama. Resumo da ópera: a "esquerda" que faz movimento e oposição é sempre muito simpática; já a esquerda que consegue organização e força suficiente para chegar ao governo, é sempre cheia de contradições e limites.
Estes limites e contradições existem, mas é simplesmente grosseiro falar que "Lula fragmentou a energia moral que vinha dos movimentos sociais" (registro que contrapor Lula versus moral é costumeiro, no pensamento da direita brasileira).
E fragmentou, segundo Rudá, porque "estatalizou"; e estatalizou porque não adotou "a lógica política dos movimentos sociais como contraponto ao processo decisório burocrático". Opa: que o governo Lula poderia e deveria ser muito mais democrático, acho que estamos todos de acordo, Lula inclusive. Mas seria possível, no âmbito de um governo nacional e nos marcos da correlação de forças, adotar a "lógica política dos movimentos" no processo decisório? Mais ainda: será mesmo que a "lógica política dos movimentos" é capaz de organizar uma atuação "de Estado"?
Minha impressão é que falta força política e falta reflexão sobre isto, sobre como ter "controle social". E, convenhamos, audiências públicas & estruturas do Fome Zero estão longe, absolutamente longe, da capacidade necessária para fazer "controle social" sobre um Estado nacional.
Enfim, por tudo que disse antes, não concordo com a análise que o Rudá faz na entrevista. Mas o mais preocupante é o desfecho, em que ele diz que "não há grandes alternativas". Que coisa! Num momento como o que vivemos, no mundo e na América Latina, nas vésperas de uma eleição presidencial no Brasil, a conclusão é que falta a "energia moral da ousadia"???
Minha impressão sobre isto é a seguinte: a classe trabalhadora brasileira só tem a ganhar, se conseguirmos construir um forte pensamento crítico de esquerda. E este pensamento deve ser crítico também ao PT e ao governo Lula. Infelizmente, alguns intelectuais que tentam construir esta crítica de esquerda se deixaram contaminar pelos cacoetes e pelo pessimismo da direita brasileira.
Um abraço, Valter Pomar
IHU/Unisinos, 11/12/2009 – www.unisinos. br/_ihu
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